Educar e proteger na internet (e não da internet)

Formar indivíduos autônomos e capazes de tomar decisões informadas e conscientes sempre foi a grande tarefa da sociedade

Éramos mais de 100 adultos reunidos na quadra de uma escola, prontos para conversar sobre os desafios de educar crianças e jovens nos dias de hoje. Como educar para um mundo sobre o qual sabemos tão pouco, no qual algoritmos conhecem mais sobre nossos gostos, medos e dúvidas do que nós mesmos? Como preparar nossos filhos para um futuro que, no presente, se apresenta tão incerto e volátil? Como orientá-los a trafegar no universo digital com segurança e ética, se não conseguimos sequer estabelecer leis que possam regulá-lo?

Provocados por perguntas como estas, os pais dos alunos desde a educação infantil até o ensino médio, se reuniram em pequenos grupos divididos pelas faixas etárias correspondentes, e se puseram a conversar e a refletir a respeito desses temas. Subsidiados por artigos e textos diversos, a ideia era que esse trabalho propiciasse uma troca de angústias, inquietações, de ideias e alternativas entre os presentes. Se é preciso toda uma aldeia para educar uma criança, como diz um famoso ditado popular africano, estávamos todos nós, aldeia tão global quanto solitária, em busca das saídas possíveis para formarmos seres humanos preparados para lidar com os desafios do nosso tempo.

Crianças e adolescentes devem aprender a questionar a ordem das coisas e a imaginar outras possibilidades

“Olhe para mim: sou apenas uma mãe exausta, de avental, no meio da sala. Como vou lutar sozinha contra as redes sociais com seus efeitos visuais e sonoros e seus superalgoritmos? Não consigo”, leu uma mãe no artigo “Quem sou eu para lutar contra Zuckerberg”, de Giovana Madalosso, publicado recentemente na Folha de S.Paulo. E num desabafo desanimado completou: “Tô assim, como ela, simplesmente acho que não vou dar conta. Pelo menos não sozinha, por isso é bom estar aqui”. Em um outro canto da sala, um casal comentava: “Proibir e decretar um monte de regras não adianta, esses meninos sabem tudo o que passa na internet, mesmo que não acessem celular ou tablet, os amiguinhos comentam, o que acontece nesse mundo online está em todos os lugares. Então é preciso que a gente fique por perto para acompanhá-los, não podemos deixá-los sozinhos”. E, tal como eles, muitos se colocaram e compartilharam suas experiências, entre preocupados e esperançosos (sim, muitos ainda acreditam no poder da educação!). E após mais de uma hora de conversas e debates, pude arriscar uma síntese da tônica das conversas: “Crianças e adolescentes devem ser protegidos na internet, e não da internet”, frase que o Instituto Alana – organização que enfoca e defende os direitos das crianças – costuma usar quando se refere à necessidade de proteger as crianças no ambiente digital. Ou seja, a realidade está posta, e cabe a nós, adultos, a tarefa nada simples de orientar nossos educandos para trafegarem nesse mar de perigos e possibilidades presentes na internet, com a segurança e a sustentabilidade a que têm direito.

Em uma recente nota técnica sobre o PL 2628/2022, o Alana tratou da proteção integral dos direitos de crianças e adolescentes no ambiente digital e, em especial, diante das plataformas digitais. Segundo a nota “o art. 227 da Constituição Federal (CF/88) e o Estatuto da Criança e do Adolescente, que consagram a doutrina da proteção integral, estabelecendo proteção jurídica especial às crianças e aos adolescentes e assegurando responsabilidade compartilhada das famílias, do Estado e da sociedade em geral, incluindo das empresas, de protegerem e de promoverem direitos de crianças e adolescentes com prioridade absoluta, garante que ‘nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão’”. Nesse sentido, não pode haver dúvidas de que “o dever de cuidado” precisa ser exercido por todos os integrantes da sociedade. Portanto, é necessário que todos nós nos sintamos responsáveis por guiar nossas crianças e jovens no universo digital, tal como fazemos no mundo físico, onde, aliás, muitas vezes, temos sido protetores ao extremo, prejudicando a sua autonomia e a liberdade. Como educar sem cercear, sem vigiar para punir, mas para empoderar e garantir que nossas crianças saibam fazer escolhas conscientes e saudáveis para suas vidas?

“Os instrumentos de proteção elaborados não podem ser desproporcionais a ponto de eles próprios violarem direitos das crianças e dos adolescentes, mas serem orientados pela promoção de empoderamento. As crianças e os adolescentes possuem direito à informação, à liberdade de expressão, à privacidade e ao livre desenvolvimento. Ferramentas de acompanhamento parental, filtros de conteúdo ou controles de acesso não podem ser excessivos a ponto de eles próprios se tornarem tão controladores da experiência e limitarem excessivamente a possibilidade de desenvolvimento, engajamento e apropriação crítica do ambiente digital”, recomenda o instituto. Mas… o que significa empoderar as crianças hoje?, pergunta a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) em seu mais recente documento, que tem essa questão como título. Segundo a instituição “ crianças capacitadas têm a oportunidade e a capacidade de agir em questões importantes e relevantes para elas, podem aprender cometendo erros, que são contribuições essenciais para a democracia”, enfatizando ainda que “capacitar todas as crianças para aproveitarem ao máximo as oportunidades digitais começa por reduzir ainda mais a disparidade em termos de acesso às ferramentas digitais e à internet, onde as desigualdades são persistentes e generalizadas”.

Formar indivíduos autônomos e capazes de tomar decisões informadas e conscientes sempre foi a grande tarefa da sociedade. O desafio que se coloca neste momento é prepará-las para que possam aproveitar as oportunidades que se apresentam no universo digital sem tornarem-se dependentes dele. Trata-se de ensinar (e aprender com eles) como funciona a internet, os algoritmos, como as redes moldam nosso comportamento e buscar alternativas que ampliem o seu leque de experiências. Crianças e adolescentes devem exercitar o direito de ir e vir tanto no mundo on como offline, aprendendo não apenas os mecanismos que regem seu funcionamento e o negócio que representam, mas sobretudo a perguntar porque são assim e se não há alternativas para que funcionem de outra maneira. Devem aprender a questionar a ordem das coisas e a imaginar outras possibilidades, a usar a imaginação criando outros universos, experimentando outros modelos de ser e estar dentro e fora da internet.

Nesse sentido, a OCDE ressalta a importância da educação midiática como possibilidade de ampliar o empoderamento das crianças. Distinguir fatos de opiniões, entender o funcionamento do autoplay do TikTok, por exemplo, são competências desejáveis para a formação de um cidadão potente, que desenvolverá a autoestima e a confiança necessárias para tomar decisões sustentáveis. Porém, vale lembrar que a educação para as mídias deve também formar para a aquisição do pensamento crítico. Ou seja, a educação midiática é para todos e deve ocorrer o tempo todo, porque antes de parar e pensar sobre o que se quer curtir, comentar, compartilhar ou postar, precisamos aprender a pensar. Se não sabemos refletir a respeito daquilo que nos acontece e num segundo momento buscar alternativas para transformar a nossa realidade, não seremos capazes de desenvolver competências e habilidades intelectuais e emocionais que nos permitam lidar com as mazelas trazidas pelas redes sociais – desinformação, ansiedade, depressão, ciberbullying, discurso de ódio, dentre outras. Talvez pareça pouco, além de difícil, empreender essa epopeia de educar em meio a esse caos que vivemos, mas, tal como os pais daquela escola, precisamos lembrar que não estamos sós e que é da soma das partes que cabem a cada um que se constrói o presente possível, de olho no futuro que queremos ter.

Januária Cristina Alves é mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews – Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação – ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.

Artigo publicado no portal NEXO em 06 de junho de 2024.

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